“Uma reflexão sobre as pressões das organizações e da sociedade sobre o indivíduo e as ameaças à identidade individual.”
"A Ku Klux Klan, que via Zelig como judeu, e que podia se transformar em negro e em índio, o encarava como uma tripla ameaça."
“Tenho um caso interessante. Estou tratando dois pares de gêmeos siameses com dupla personalidade. Sou cobrado oito vezes mais!” (Leonard Zelig, fala insana nº 1 do filme “Zelig”)
ELENCO:
Mia Farrow (Dra. Eudora Fletcher)
John Buckwalter (Dr. Sindell)
Marvin Chatinover (Médico)
Stanley Swerdlow (Médico)
Paul Nevens (Dr. Birsky)
Sol Lomita (Martin Geist)
Mary Louise Wilson (Irmã Ruth)
Richard Litt (Charles Koslow)
Sharon Ferrol (Miss Baker)
Stephanie Farrow (Meryl)
FICHA:
Título Original: Zelig
País de Origem: EUA
Ano de Lançamento: 1983
Gênero: Comédia / Fantasia
Duração: 1h 29Min
Idioma: Inglês
HISTÓRICO:
Comédia dramática dirigida e protagonizada por WOOD ALLEN.
Com este hilariante “Zelig” (1983), Wood Allen se entrega a um trabalho inédito de sua carreira: a metalinguagem.
“Zelig” é, sob muitos pontos de vista, um dos mais atípicos filmes de Allen. Contrariando a sua média de um filme por ano, o realizador concentrou-se por muito tempo na realização desta obra, devido a dificuldades técnicas e ao seu perfeccionismo levado ao extremo.
Os problemas na montagem e finalização foram tantos que Allen ainda rodou e distribuiu “A Midsummer night’s sex comedy” e “Broadway Danny Rose” enquanto “Zelig” se encontrava em pós-produção com testes de laboratório, manipulação da película e preparação dos efeitos especiais.
A principal razão para todos estes problemas prende-se a determinação de Allen em atingir ao máximo a dicotomia entre a realidade e a ficção, criando um “autêntico documentário”, alicerçando-se nos códigos do formato jornalístico, porém de um protagonista fictício.
A sua forma de narrar á história em questão, apesar de não ser completamente inédita, é o que mais desperta atenção nesse filme.
Allen já havia utilizado desse recurso em outros de seus filmes, “Um Assaltante Bem Trapalhão”, 1969; “Maridos e Esposas”, 1992 e “Poucas e Boas”, 1999. No entanto, nesses títulos, há uma mistura de falso documentário e ficção normal, algo que não ocorre em “Zelig”.
O diretor, em “Zelig” imprime uma bizarra narrativa que intercala testemunhos da atualidade (ou pelo menos da atualidade em que o filme foi rodado, em indícios dos anos 80) com imagens de arquivo dos anos 20-30, juntando cenas de antigos documentários com sequências novas de ficção, conseguindo ótimos resultados e propiciando ao diretor de fotografia Gordon Willis a oportunidade de um trabalho magistral.
A fita aprimorou a técnica de montagem de cenas rodadas com material antigo, reunindo depoimentos de intelectuais reais e permitindo que Allen, contracenasse com personalidades falecidas para dar um aspecto de maior fidedignidade, o que resultou num filme considerado o mais criativo. Dessa forma, o filme fascina na medida em que a presença de Zelig distorce a história verdadeiramente documentada no passado, como por exemplo, a passagem ficcional de Zelig pelos Estados Unidos nas décadas de 20 e 30; sua ida a Europa durante a ascensão de Hitler; a confusão que causou no vaticano; os resquícios deixados na dança e música daquela época, bem como no cinema.
TÉCNICA E MONTAGEM:
Wood Allen sempre flertou com diferentes modos de narrar. Em “Zelig” as personagens e o conflito humano são apresentados através da reunião de diversos depoimentos extraídos de cinejornais, fotos e filmes noticiosos da época, alguns originais, retocados ou modificados, outros simplesmente produzidos e envelhecidos, permitindo a inclusão, no filme, de alguns momentos significativos do século XX.
O contraste conseguido com as imagens em preto e branco versus as cenas da atualidade fotografadas em cores (época em que o filme foi rodado), dá-lhe um caráter de verossimilhança tão perfeito que chega, muitas vezes, impressionar o espectador. Allen e Gordon Willis, diretor de fotografia, para conseguirem essa proeza utilizaram-se de várias câmeras e lentes próprias da década de 20 e 30, filmando com Super8, câmeras de TV, câmeras de 35 mm, simulando danos aos negativos para fazer com que o produto final confunda-se com antigo. Para tanto, pisaram em cima dos mesmos, jogaram-nos na água, arranharam, colocaram na geladeira etc. Além de recorrerem a técnica do “chroma key” de processamento de imagens cujo objetivo é eliminar o fundo de uma imagem para isolar as personagens ou objetos de interesse que posteriormente são combinados com uma outra imagem de fundo para registrar a aparição de Zelig,
entre as diversas personalidades da época. Entre elas, Zelig ao lado do Papa Pio XI, entre convidados famosos no “garden party” do escritor Scott Fitzgerald; ao lado de Hitler; Charles Lindbergh, Al Capone, William Randolph Hearst , Marion Davies, Charlie Chaplin, Josephine Baker, Fanny Brice, Carole Lombard, Dolores Del Rio, Adolf Hitler, Josef Goebbels, Hermann Göring, James Cagney, Jimmy Walker, Lou Gehrig, Babe Ruth, Bobby Jones; incluindo, também, a ensaísta Susan Sontag, o psicólogo Bruno Bettelheim, o escritor vencedor do Prêmio Noberl Saul Bellow, o autor político Irving Howe, o historiador John Morton Blum e a empresária da noite de Paris Bricktop, buscando, dessa forma, ultrapassar a barreira da ficção.
O resultado, além de ser perfeito, graças a essa engenhosa montagem é recheado pelo humor famoso do cineasta.
Há um distanciamento entre o espectador, os atores e suas falas, exceto em algumas filmagens sonoras, como as sessões de análise gravadas pela Dra. Fletcher.
No entanto, mesmo com limitado tempo de fala, as personagens apresentam-se fortemente marcadas, sempre presentes, pois esses recursos se tornam imperceptíveis, centralizando-se na narrativa e nunca chamando a atenção para si mesmo.
O filme “Zelig” surpreende não só pela direção, fotografia e roteiro. A trilha sonora do filme também merece destaque. Nela, encontra-se: "I'm Sitting on Top of the World" e "Five Feet Two, Eyes of Blue", de Ray Henderson, Sam Lewis e Joe Young; "Sunny Side Up", de Henderson, Lew Brown e Buddy G. DeSylva; "Ain't We Got Fun", de Richard A. Whiting, Ray Egan e Gus Kahn; “Charleston”, de James P. Johnson e Cecil Mack; "I'll Get By", de Fred E. Ahlert e Roy Turk; "I've Got a Feeling I'm Falling", de Fats Waller, Harry Link e Billy Rose; "I Love My Baby (My Baby Loves Me)", de Harry Warren e Bud Green; "A Sailboat in the Moonlight", de Carmem Lombardo e John Jacob Loeb; "Chicago (That Toddlin' Town)", de Fred Fisher; e "Anchors Aweigh", de Charles A. Zimmerman e Alfred Hart Miles. Dick Hyman também compôs diversas canções supostamente inspiradas pelo fenômeno Zelig, incluindo "Leonard the Lizard," "Reptile Eyes," "You May Be Six People, But I Love You," "Doin' the Chameleon," ""The Changing Man Concerto," e "Chameleon Days" - esta executada por Mae Questel, a voz de Betty Boop.
TEMPO E NARRADOR:
A técnica criativa do filme disponibiliza recursos audaciosos, como o uso de depoimentos posteriores ao tempo da trama e o uso de um narrador constante sem afetar seu mérito.
Allen consegue fazer humor satírico e contar a história através de diversos pontos de vista, passando para o espectador o clima de comoção de diferentes segmentos da sociedade em relação a Leonard.
A história se passa em meio ao ritmo alucinante entre os anos de 1920 e 1930, na efervescência do “American way of life”. Porém, apresenta um retrato específico não só da América (os anos loucos, à ascensão do fascismo na Europa, o surgimento das estrelas que começavam a emergir e à exploração mediática das suas vidas em mudança), como do próprio mundo, tal como Zelig.
Allen ainda aproveita as circunstâncias para ironizar a imprensa, suas raízes judaicas, os relacionamentos, o K.K.K. e o Partido dos Trabalhadores (Labor Party), por quem Leonard é odiado.
RESUMO DO ENREDO:
“Zelig” não se resume apenas numa comédia divertida Trata-se de uma história lírica, comovente, sociológica, histórica, psicanalítica, reflexiva etc
Leonard Zelig é o protagonista desse virtuosismo filme, interpretado pelo próprio Wood Allen que sem afastar emocionalmente o espectador da sua personagem, leva-o questionar sobre a perda de personalidade e sobre a aceitação do indivíduo pela sociedade.
Para o protagonista, somente os outros eram interessantes e para suprir a falta de amor próprio, adquire a misteriosa capacidade de transformar sua personalidade e fisionomia na presença das pessoas que o cercam, tornando-se um legítimo camaleão-humano, objetivando integrar-se e ser aceito na sociedade. De tão acostumado a absolver a personalidade de outros, Zelig despreza sua própria, abdicando assim de sua humanidade, vivendo uma não existência, que, fugindo de si mesmo, perde sua individualização e cai num coletivo padronizado.
A cultura o exilou no seio do seu próprio ser, para que pudesse ser sujeito. Introduziu no que era próprio o alheio, o outro. E, é principalmente neste tema que o filme se debruça: na transformação e perda de personalidade por parte de um homem, em detrimento da sua integração, do desejo de se misturar nas multidões e não se destacar.
Sabe-se que o camaleão é um réptil que, para se adequar ao ambiente ao seu redor e passar despercebido pelos seus inimigos, muda sua cor. No caso de Zelig, não se trata de performances dramáticas, a sua metamorfose ocorre involuntariamente, forma de adaptação ao interesse do momento de acordo com o ambiente em que se encontra inserido
Zelig é observado inicialmente numa festa, por F. Scott Fitzgerald, que nota que, ao mesmo tempo em que circula entre os convidados comportando-se de forma refinada e culta, em outro momento, o protagonista se mistura aos criados na cozinha, vociferando enfurecidamente contra os "gatos gordos" em linguagem coloquial.
Identificado aos poucos, pelo seu dom de transformação, Zelig ganha notoriedade e passa a ser o centro de curiosidade da mídia, das manchetes internacionais; de médicos; psicólogos; curiosos e de pesquisadores de universidades especializadas para que se possa detectar a anormalidade que o atormenta.
Essa particularidade o faz uma aberração e também, uma celebridade, em meio ao ritmo alucinante dos anos 20, na efervescência dos EUA, quando a imprensa vive de escândalos, de novidades escabrosas e chocantes.
Sua foto e seu martírio são espalhados por jornais de variadas tendências da época e o seu caso é tratado com extremo sensacionalismo, dividindo opiniões públicas, ora sendo amado ora sendo odiado.
Zelig é internado num hospital psiquiátrico e muitos cientistas empenham-se em diagnosticar este estranho fenômeno, mas todas as pesquisas não atingem êxito. Entre os diagnósticos, das mais variadas espécies, encontra-se os de caráter psiquiátrico até os físicos, provenientes de mau funcionamento de determinados órgãos, inclusive prenúncios estipulando tempo de vida curta para o paciente.
Sua anomalia desperta o interesse profissional de uma psiquiatra, a única pessoa que realmente parece preocupar-se com Zelig, a Dra. Fletcher (Mia Farrow), que ao contrário dos outros, acredita que seja uma perturbação mental.
Ela vê Zelig não como um títere manipulado pela sociedade ou uma experiência científica e, sim, como um ser humano que anseia ser aceito, amado e compreendido.
Eudora pretende tratá-lo clinicamente, através do uso da hipnose, mas esbarra nos interesses de sua família, que visão capitalizar esse “dom” de Zelig e exibi-lo como um espetáculo lucrativo.
A médica descobre que Zelig anseia tão fortemente por aprovação que se altera fisicamente, na esperança de se adequar aos que o cercam. A determinação da Dra. Fletcher permite eventualmente que ela o cure, não sem, no entanto, algumas complicações; ela acaba por elevar tanto a auto-estima de Zelig que ele termina desenvolvendo temporariamente uma personalidade que é violentamente intolerante a respeito das opiniões de outras pessoas.
A médica descobre que está se apaixonando por Zelig. Devido à cobertura feita pela mídia do caso, tanto o paciente quanto a doutora tornam-se parte da cultura popular de seus tempos. No entanto, a fama é a principal causa de sua divisão; a mesma sociedade que fez de Zelig um herói acaba por destrui-lo.
Médica e paciente se apaixonam, entretanto, ela não aceita o seu pedido de casamento enquanto Zelig não se libertar de suas personagens.
Outra oportunidade o coloca novamente em contato com Eudora Fletcher que após estudar o seu caso, realizar muitas entrevistas e consultas consegue fazer com que ele entenda a sua importância como ser humano único, singular, com beleza própria e inconfundível.
A doutora Fletcher o encontra na Alemanha, trabalhando com os nazistas, pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Juntos, fogem e retornam aos EUA, onde são proclamados heróis (depois que Zelig, usando mais uma vez sua habilidade, imita as habilidades de pilotagem de Fletcher e pilota o avião que lhes traz de volta, cruzando o Atlântico, de ponta cabeça).
O tratamento psiquiátrico, um autêntico resgate daquela prisão que era o seu fenômeno de homem-camaleão, transforma-se numa história de amor. Assim, diante de uma história de alguém que se perdeu em si próprio e que, apenas com a ajuda de uma psiquiatra dedicada (Mia Farrow) e, em última instância, do amor, terá Zelig alguma hipótese de se reencontrar.
Não mais encontrando sentido no medo do sobre-eu, que estava no fundo de todo relacionamento, o eu perde o medo do outro. Para sobreviver, ele não mais precisa ser como o outro, nem corresponder ao seu desejo. Ele deixa de ser objeto “ser-para-os-outros” e conquista a condição de sujeito “ser-para-si”.
A Dra. Eudora Fletcher confirma a Zelig que é a ele que ama, e não, as outras pessoas por ele representadas. Promete a Zelig o seu amor quando ele vir amar a si mesmo. Indica-lhe o caminho da cura, salvando-o de seus fantasmas e acabam se casando. No entanto, começam a pulular vários processos para que ele reconheça a paternidade de várias crianças; as mulheres que ele iludiu quando assumia outras personalidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
"Zelig" é uma crítica social sarcástica, eficiente do cinema contemporâneo.
O filme é interessantíssimo sob o ponto de vista psicológico e humano: a capacidade mimética do “eu é outro” e a necessidade de “ser famoso por não se ser ninguém em concreto”, traz ainda um questionamento sociológico.
Zelig ao proceder à multiplicação interior e exterior, paga um alto preço: a de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração do “eu”.
Allen registra autobiograficamente seus conflitos em Zelig, desbloqueando as barreiras que normalmente se erguem na percepção do eu e do outro. Allen é uma referência no que diz respeito à dualidade da personalidade, atribuindo ao ator (a gagueira, a fala apressada de um nova-iorquino, etc.) às principais características do autor e brincando com as fronteiras que separam a história, da realidade inventada das suas narrativas cinematográficas.
O filme contém, também, alguns dos elementos temáticos do cinema de Allen: uma crítica sutil a sociedade; a questão judaica, o fato de não conseguirem um espaço dentro da sociedade; o racismo dentro dos EUA, “um judeu que pode se transformar em índio ou negro é uma tripla ameaça” e a necessidade de produzirem ídolos.
Woody Allen demonstra toda a sua cultura e faz exatamente aquilo que os regimes totalitários faziam: a perda da identidade para se fazer parte da massa, Zelig é exatamente isso e, para criticá-los, cria uma análise crítica sobre a farsa, travestida de realidade.
A criação deste personagem fantástico também permite ao cineasta discutir como há uma exploração midiática de casos e eventos semelhantes. Com a mesma velocidade, sofreu acusações e foi rejeitado pela imprensa e pela sociedade.
Zelig é a concretização do nosso tempo, da busca por uma identidade e da construção dela própria a partir do outro. Para se sentir mais seguro, usando as palavras do próprio personagem. Ergin Goffman, citado no início, diz que “(…) o papel que um indivíduo desempenha é talhado de acordo com os papéis desempenhados pelos outros presentes e, ainda, esses outros também constituem a platéia” (GOFFMAN, 1999).
Além disso, o filme mostra que o "fenômeno Zelig" rendeu canções, brinquedos, até mesmo um filme hollywoodiano contando sua história, enfim, foi um grande modismo nos anos 20 e 30. E mostra como a cultura americana pode transformar um cidadão comum no inimigo público número 1 e logo em seguida, perdoá-lo, elevá-lo a herói como quem muda de roupa e subitamente ser esquecido nas décadas seguintes.
Fernando Pessoa ao criar seus heterônimos também procede à multiplicação, porém somente interior: uma polipersonalidade. Mediante essa dispersão anímica, o poeta se habilita a ver o mundo como os outros o vêem. Os seus heterônimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa e de forma consciente.
“Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo.
Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me.”
Fernando Pessoa – Álvaro de Campos
Leonard Zelig no início de seu tratamento psicológico afirma que a sua primeira experiência com a multiplicidade dos seus “eus”, foi quando se sentiu inferiorizado por não ter lido “Moby Dick”, de Herman Melville e; ironicamente, quando Leonard Zelig está prestes a morrer, sentiu grande tristeza por não ter terminado a leitura do referido livro como se sentisse ainda incompleto.
“Moby Dick” (1851) é uma obra que transita pelos gêneros da aventura, crônicas de viagem, memorialismo, misticismo, filosofia, ciência, história, teatro e muito humor. Esta obra que é tão complexa, ao mesmo tempo é um feito inigualável, pela redução das personagens e pelo curto tempo que foi escrita.
Com uma colossal baleia branca, um capitão, um navio, o oceano e alguns coadjuvantes, Melville reproduziu com rigorosa perfeição o fluxo da vida em toda a sua complexidade: a essência da literatura, a partir de um mínimo de elementos.
O narrador, Ismael, um sujeito meio apagado e irônico ao extremo, embarca num navio baleeiro em Nantucket, na costa leste americana, para trabalhar alguns meses como membro da tripulação de um navio, o Pequod, caçando baleias de uma espécie gigantesca, muito valiosa pelo seu óleo.
Ahab, o capitão do Pequod, perdeu uma perna, quarenta anos antes, na caçada a Moby Dick, a “baleia assassina”. A baleia conseguiu escapar. Ao contrário do resto da tripulação, que embarcou por dinheiro ou aventura. O único objetivo de Ahab nesta viagem era capturar Moby Dick e matá-la. Dizê-lo “movido pelo desejo de vingança” seria simplificar demais as coisas: a caçada é a existência inteira de Ahab e seu sentido único.
Enquanto não chega o momento da perseguição definitiva a Moby Dick, várias tramas paralelas se desenvolvem na viagem: os marinheiros do Pequod caçam algumas baleias, interagem com outros navios em alto-mar, bebem e se divertem, enquanto Melville aproveita para interromper a narrativa, a toda hora, para fazer digressões sobre o mundo das baleias, sua fisiologia, técnicas de caças etc.
O foco narrativo é deslocado para a terceira pessoa, adquirindo um narrador onisciente e relatando através de um monólogo interior, o fluxo de consciência de Ahab e de alguns outros marinheiros.
Nesse enredo tão simples, Melville recombina várias narrativas e alegorias da Bíblia, fazendo de sua obra um livro de profecias, as quais todas se cumprem. Tudo, em “Moby Dick” há presságios do destino final, desde os mais óbvios (como o sermão do padre Mapple, antes do embarque) aos mais ocultos, do mesmo modo como a natureza, por meio de sinais, anuncia o clima vindouro.
Os navios que o Pequod encontra pelo oceano fornecem pistas de que uma grande tragédia está para acontecer com Ahab e sua tripulação. Mas todos os homens do Pequod, aos poucos, vão sendo contaminados pela obsessão.
Ahab termina por ceder, traindo a própria consciência por fraqueza de caráter ou excesso de fidelidade. Ele mais do que ninguém, não pode deixar de caminhar para a morte e levar a tripulação consigo.
A revolta de Ahab contra o destino, contra a submissão do homem às forças da natureza, é acompanhada de uma completa ignorância de que seria possível subtrair-se completamente a tal submissão.
Há também na tripulação um menino louco, Pip, cuja aceitação tranquila da própria desgraça inspira em Ahab certa curiosidade, afeto e simpatia; a consciência desses sentimentos poderá contribuir para sua possível “conversão”.
No capítulo “A Sinfonia”, depois de uma veemente confissão a Starbuck, Ahab parece enfim perceber a própria insanidade, e resolve desistir de seus planos. Mas a alquimia espiritual requerida é muito mais exigente e complexa: no momento em que está para consolidar sua decisão, ele sente o cheiro de Moby Dick. É a prova final; mas, cego pelas sensações, ele rejeita em definitivo o chamado. Sua obsessão, como não poderia deixar de ser, ressurge com ainda maior fúria, e ele parte, sem vacilar, para sua nêmese.
No terceiro dia que luta contra a baleia, Moby Dick destrói o Pequod e Ismael (como no livro de Jô, “E só eu escapei para vos dar a notícia”), relata friamente como foi o único a sobreviver ao naufrágio, agarrado ao caixão (coffin) de um dos arpoadores do navio, Queequeg. É interessante notar que Ismael e Queequeg se conheceram, pouco antes de embarcar, na estalagem.
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