domingo, 17 de outubro de 2010

DOGVILLE (2003)


Filme dinamarquês lançado em 2003 e dirigido por Lars Von Trier, estrelando Nicole Kidman (Oscar de melhor atriz) e Paul Bettany.

• Direção: Lars von Trier
• Roteiro: Lars von Trier
• Gênero: Drama
• Origem: Alemanha/Dinamarca/Estados Unidos/França/Holanda
• Duração: 177 minutos
• Tipo: Longa-metragem


“Uma “novela exemplar” sobre o comportamento humano, a vida em comunidade e a tensão que se estabelece entre a escolha individual e a norma coletiva, onde a desumanidade “emana” da humanidade”.



HISTÓRICO:

O diretor dinamarquês Lars Von Trier é um dos pais do movimento estético “Dogma 95”, surgido em Copenhague em 1995.
Este Movimento reage contra a profusão de efeitos especiais no cinema e busca o verdadeiro Cinema de Arte, onde o diretor apenas com uma câmara no ombro, parte em busca das melhores cenas, ou antes, das cenas que possam exprimir as ideias desejadas, contrariando algumas tendências do “cinema comercial” e recuperando um cinema que consideravam estar morto.

Segundo tal manifesto “A tarefa suprema dos realizadores decadentes é enganar a audiência. É disso que estão tão orgulhosos? Foi isso que “100 anos” nos deram? Ilusões a partir das quais as emoções podem ser comunicadas? (...) Uma ilusão da dor e uma ilusão do amor?”

Dessa forma, o radicalismo formal e o conteúdo de “Dogville” lembra, ao menos, as ousadas experiências feitas pelo movimento dinamarquês.
“Dogville” realizado em 2003 teve inspiração inicial à canção “Pirate Jenny”, do musical “A Ópera dos três Vinténs”, de Brecht.
No Brasil, o episódio é conhecido através da música “Geni e o Zepelim”, feita para a “Ópera do Malandro”, adaptação maravilhosa de Chico Buarque para a obra de Brecht.
A grande polêmica de “Dogville” é o fato de Lars Von Trier ter dito explicitamente que o filme era sobre a América, levando muitos americanos sentirem-se ofendidos, acusando Lars de antiamericanismo. O fato de ele jamais ter visitado os Estados Unidos e apresentar imagens de sem-teto americanos ao som de Young Americans, não depõem ao seu favor.
Porém, quando perguntaram a ele como podia criticar um país que não conhecia, ele respondeu:

“– Os americanos nunca foram a Casablanca para fazer “Casablanca”.


Os atores de “Dogville” são todos americanos, porém Lars fez questão de selecionar um narrador inglês, atestando que o filme é contado sob o ponto de vista de um estrangeiro, do “outro”.
Será que “Dogville é mesmo uma metáfora da América e a crueldade deste retrato engloba toda a Humanidade?”
Esse questionamento não tem relevância, afinal o mundo se pauta nos Estados Unidos, pelo “american way of life”, dividido em grupos favoráveis ou em oposição. Assim, Lars ao apresentar a América e falar sobre sua organização social, seu objetivo é retratar o mundo e a humanidade em geral. É certo que Von Trier não está se referindo ao homem em geral e que concebe os horrores de “Dogville” como uma espécie de magma de onde surge a América atual, bélica e expansionista.
O filme foi lançado depois do fatídico 11 de setembro e ao apresentar a cena do cruel assassinato do bebê, faz questionar: “Coitado do bebê, mas ele teve o que mereceu” e, em seguida, ao assistir a destruição das Torres Gêmeas conclui-se: “Não acho que os americanos sejam piores que os outros, mas também não os acho menos maus que os dos estados terroristas de que fala o Sr. Bush. Acho que as pessoas são iguais em todo o lado. Mas que dizer da América? O poder corrupto. É um fato. O poder dado às pessoas sobre outra, corrompe-as.” (BJörkman, obra citada, p.2)


TÉCNICA E MONTAGEM:

O filme chama a atenção pela simplicidade de seus cenários e cortes de cenas não convencionais.
Composto por nove capítulos e um prólogo, todo o filme foi filmado dentro de um galpão localizado na Dinamarca com o mínimo de artefatos.
O filme é minimalista, contado no terreno da fábula. Suas casas não têm paredes, apenas linhas pintadas no chão com giz. O diretor utilizou alguns objetos de cena, mas nenhum cenário, onde apenas se lê: “Casa dos Henson”, “Casa dos Edison” etc e de onde o único cachorro desta vila, não passa de um desenho no pavimento. De real, apenas seu latido. Ao abdicar dos cenários e dos adereços, o diretor procurou valorizar o âmago de cada personagem para que o espectador, despojado do “supérfluo” e do “superficial”, pudesse olhar apenas para o que verdadeiramente interessa em seu filme: a desumanidade que “emana” da humanidade.
O espaço remete obviamente para o teatro, para o exercício de encenação e para a literatura; utilizando vários elementos do teatro de Bertolt Brecht.
O cenário invisível permite que o espectador veja os coadjuvantes em seus afazeres longe do foco principal da ação. Além de servir como metáfora do filme, não desviando a atenção do espectador para nada além da narrativa, o artifício ressalta a dramaticidade através da encenação.
Desse modo, Von Trier consegue estender a profundidade de campo e sublinhar as consequências de cada ação individual em relação à comunidade.
Apesar das personagens fazerem constantes referências a paisagem ou ao céu, o fundo é infinito, tendo constantes alterações de luz e cor que indicam mudanças de dia e noite, clima e de momentos importantes do filme.
O filme é composto por um prólogo, que apresenta as personagens, e nove capítulos, sua argumentação pode ser dividida em três partes:
1 – Grace é aceita na cidade e torna-se útil a cada um os moradores, oferecendo seus préstimos: companhia a um homem cego que não admite a cegueira (Ben Gazzara), colhendo maçãs para um sitiante (Stellan Skaarsgard), ou cuidando do pomar de Ma Ginger (Lauren Bacall);
2 – Quando a polícia e os gangsteres intensificam a procura por Grace e os moradores tornam-se cruéis;
3 – O desfecho da trama, com uma mudança de atitude de Grace.

No filme, não há presença de um narrador-protagonista e, sim, um narrador onisciente que é o próprio Lars Von Trier, que controla a câmera e é responsável pela mediação entre os eventos dramáticos e o espectador.
Uma voz entra no inconsciente das personagens e traz à tona as contradições, os conflitos e os desejos reprimidos, os quais, ao longo do decorrer do filme, envolvem tragicamente o destino dos cidadãos da pequena e pacata cidade de Dogville.
Numa primeira análise, a abordagem escolhida por Thier se encaixa pelas poucas locações; uma iluminação não convencional (mas artificial, uma proibição do movimento), temas atuais e o cenário mínimo (mas em estúdio).
Existe um “making off” sobre a forma como seu diretor conduziu o processo de filmagem, alugando um galpão nos arredores da cidade e mantendo o grupo de atores em confinamentos, objetivando colocar em prática a sua visão sobre “interpretação” não “representação” da personagem, mais efetivamente, tornar-se, “ser” a personagem.
A atriz Nicole Kidman após a cena do “estupro” sentiu-se mal a ponto de ter uma crise de choro intensa. Construíram uma espécie de “sala de confissão” no set, onde consta um registro do depoimento de Nicole Kidman afirmando que passou a nutrir sentimentos negativos frente ao diretor e, que nunca mais trabalharia com ele.
As soluções técnicas cinematográficas são conseguidas pelos movimentos de câmera; o cenário absolutamente “clean”, ou ainda melhor dizendo, ausência de cenários; as inúmeras citações visuais e sonoras e, a genialidade de fazer uma espécie de teatro filmado remete a um clima conceitual Brechtiano.
Outra referência ao teatro de Bertold Brecht, é que comumente colocava avisos de “atenção, não se emocione isso é ficção” em suas peças, ao teatro da caixa preta, realizado em um cenário com as paredes todas pretas, e finalmente ao teatro Improv (de improviso), onde os atores criam objetos imaginários do nada e os outros tratam de contorná-los, consistência a estes.


ESPAÇO / TEMPO:


Uma análise sociológica permitia dizer que “Dogville” tratava-se de uma crítica aos EUA, no sentido de retratar a forma intolerante como praticam seu poder e liderança sobre o resto do mundo.
A ação do filme decorre numa pequena e pobre aldeia norte-americana, com pouco mais de uma dezena de residentes, situada em algum lugar entre as montanhas do meio oeste estadunidense e gira em torno de Grace, uma jovem fugindo de perigosos gangsteres, durante os difíceis anos da Depressão que se seguiu à crise de 1929.
Em “Dogville” não há polícia, não há prefeito, não há padre para celebrar as missas na igreja, não há jardins, não há casas e não há de fato uma cidade.
Talvez Trier tenha optado por transformar os cenários de seu filme em simples marcações de chão para não deixar o espectador se esquecer de que, assim como a vida em sociedade, tudo aquilo não passa de mera representação.
Mas, a simplicidade do local cativa a todos nós; lá estão: a macieira, o arbusto de groselha, os bonequinhos de porcelana etc.
Dogville é um lugar onde nada acontece, onde todos sabem da vida de todos, e onde os segredos, se eles existem, ficam entre quatro paredes. Porém, a obra é muito mais abrangente e persegue uma dimensão universal e moralista. Claro que esta história moral vai-se adequando com maior ou menor exatidão às situações históricas atuais e poderia estar posicionada em qualquer lugar do mundo em função de mudanças na forma dos seus relacionamentos.
As características da comunidade de Von Trier não têm espaço geográfico ou temporal. É um lugar comum, onde o mesmo provincianismo, a mesma estreiteza de vista, a mesma falta de capacidade reflexiva e analítica podem fazer parte de comunidades urbanas e modernas.
Mas, basta que algo de diferente aconteça, para que os habitantes de “Dogville” deixem cair à máscara da boa-vizinhança e partem para toda a sua crueldade.
É exatamente isto que Trier faz: ele retira as paredes e portas deste local; derruba a “quarta parede” e o que vemos não é nada agradável.


PERSONAGENS:

Em “Dogville” residem um grupo de quinze pessoas. Se “Dogville” representa a alegoria sobre a sociedade em geral, seus integrantes metaforizam a hipocrisia humana, que é exposta sem piedade através do seu cotidiano medíocre.
De repente, vêem suas vidas invadidas pela chegada de uma mulher lindíssima, que fugia de algo desconhecido e atemorizante para eles. Acabam aceitando conviver com ela (com o “novo”) e a partir daí, todos os valores e comportamentos de adaptação da comunidade são colocados em cheque.
No grupo havia uma espécie de líder, um porta-voz não escolhido pela comunidade, mas que incomodava àquelas pessoas.
Tom, escritor e filósofo mal sucedido procura manter uma unidade comunitária entre os quinze habitantes por meio de reuniões semanais, tentando convencer as pessoas de assuntos que considerava importantes, em função de sua ideologia filosófico-existencial.
As pessoas daquela comunidade, na verdade nem sentiam necessidade de relacionamentos interpessoais, envolvidas em profundos tédio e sentimentos de obrigação, assim, os encontros é uma forma mecânica dos habitantes de “Dogville” se encontrarem e fingirem hipocritamente.
Tom, a personagem que “organizava” as reuniões “democráticas”, explanava nessas reuniões suas teorias e alçava ares de liderança local. Ele era artificial e sem pragmatismo; no entanto, as pessoas que frequentavam as reuniões, mesmo sem objetivos, ouviam àquelas propostas pseudo-filosóficas.
Com a chegada de Grace, Tom passou a funcionar como uma espécie de observador passivo do grupo. Primeiro, procura a todo custo mantê-la na cidade, como forma de exemplificar sua teoria de aceitação e convívio social, para depois, aceitar o desenrolar dos acontecimentos, não assumindo nada, muito menos o seu amor pela estranha, centrando-se somente em seu desejo de encontrar um tema para o seu livro.
Tom apresenta a cidade que ele diz tanto amar à Grace de forma estranha:

“Bem, é aqui que Olívia e June moram. June é aleijada. Elas moram aqui como prova da liberalidade do meu pai. Chuck e Vera têm sete filhos. Eles se odeiam. Ao lado, temos os Hensons. Eles ganham a vida raspando a boca de copos baratos para que pareçam copos caros. Aqui, temos o Jack Mackay. Ele está cego, a cidade toda sabe. Mas ele acha que pode esconder isso e nunca sai de casa. Ali, Bem guarda a caminhonete. Ele bebe, visita o bordel uma vez por mês e se envergonha disso. (...) Agora só faltam MaGinger e Glória. Elas têm uma loja muito cara exploram o fato de que ninguém sai da cidade. (Olha para os bonecos na vitrine) Esses bonecos horríveis descrevem melhor essa gente do que palavras.”

A frieza da descrição de objetos e das pessoas feita por Tom, despindo e revelando as mais recônditas fragilidades dos habitantes de “Dogville”, “maculados”, desde o início do filme, demonstra a indiferença do homem frente ao homem e antecipa a carga dramática que irá desenrolar em sua narrativa.
Este grupo traduz os diferentes papéis que as pessoas acabam representando na sociedade: as angústias, os desejos, os medos, a agressividade, a falsidade, a cumplicidade, o comprometimento e a falência total do comportamento ético.
Revelando a sua vilania, representada através de pecados da natureza humana como: a vaidade (Chloe Sevigny), o orgulho (Bem Gazarra), a ira (Patrícia Clarkson), a luxúria (Jean-Marc Barr), a avareza (Lauren Bacall) e a inveja (Stellan Skarsgard) - os moradores são desmascarados perante o público. Desse modo, por trás do gesto de tolerância e compreensão coletiva, só havia torpes interesses individuais.
O pseudo-filósofo parece que sente prazer em denunciar os defeitos e as debilidades dessas pessoas, pois pode “abrir as suas chagas e feridas” numa eventual batalha.
Esta “carnificina social” fica explícita na utilização da metáfora dos cães e na luta pelos ossos, remetendo-nos ao título do filme: a cidade ou vila dos cães.
No capítulo VI: “Quando Dogville mostra os dentes” revela como se corroem as relações humanas quando a inveja e a cobiça se fincam como pressupostos de manutenção ou ganho de poder.

“Em toda sua vida, Gracie tinha prática em esconder as emoções e não achou que seria difícil controlá-las agora. Mas a porcelana espatifada no chão era como tecido humano a se desintegrar. Os bonecos que comprou eram resultado do seu encontro com a cidade. Eles eram a prova de que, apesar de tudo, seu sofrimento havia criado algo de valor. (Gracie chora) Gracie não agüentava mais. Pela primeira vez, desde a sua infância, ela chorou.”

Os cães, como os seres humanos, matam-se por um simples osso, demonstrando nossa incapacidade em olhar solidariamente o problema alheio. Portanto, “Dogville” aguça o olhar e a crítica dos seres humanos para que seus erros e injustiças não sejam repetidos.
No filme, como frequentemente nos grupos humanos, existe até uma inversão total de valores, a catarse do final onde a “justiça”, a filosofia ideológica enfim, o pragmatismo justiceiro, é praticado exatamente pelos gangsteres e não pelos responsáveis pela aplicação da justiça.


LINGUAGEM:

Comunicação também não parece ser possível para os moradores de “Dogville”. O que falam são frases vazias e sem sentido e, quando questionados são evasivos, desviam o assunto ou simplesmente parecem responder à outra pergunta.
Chuck fala de colheita de maçãs quando está querendo abusar sexualmente de Grace, e Ma Ginger reprime-a quando ela passa entre os arbustos, dizendo argumentos que simplesmente não respondem àquilo que ela diz.


RESUMO DO ENREDO:


“Dogville” começa com a voz do ator inglês John Hurt narrando, em off, com a entonação de um contador de histórias, ao mesmo tempo em que se lê na tela: “O filme Dogville” é contado em nove capítulos e um prólogo. Durante todo o filme vão aparecendo os números dos capítulos e as indicações do mote de cada um deles.
“O Prólogo” apresenta-nos a cidade e seus habitantes, começando com uma tomada de cima pra baixo, onde se pode ver o desenho da cidade (com as legendas desenhadas no chão). Essas tomadas perpendiculares repetir-se-ão em diversas cenas, consideradas pontos importantes, durante a narrativa.
O narrador onisciente, então, apresenta as personagens componentes da comunidade (“todos têm pequenos defeitos facilmente perdoáveis”) e explicando suas histórias, enquanto estas se movimentam num cenário quase nu, desviando-se de paredes invisíveis.
Entre os moradores de “Dogville”, a personagem principal é Thomas Edson Jr., um filósofo-escritor que para protelar o dia em que terá que começar escrever um livro se ocupa com sermões sobre ética moral.
Tom provoca a população de “Dogville” questionando-os da falta de diplomacia de não driblarem com novas situações que a vida apresenta, quando é interrompido por barulhos de tiros à distância.
Um esquema típico do cinema clássico americano: a harmonia do espaço, visto como “paraíso terrestre” será quebrado pelo desconhecido, o invasor, àquele que tirará a paz local, desta forma, está lançado o mote da narração.
Em seguida, surge Grace, uma linda mulher, vestida elegantemente, denunciando à sua origem.
Grace conta a Tom que está fugindo de um gângster e ele, vendo nela o exemplo perfeito para sua “tese”, oportunamente lhe dá cobertura.
Os moradores a princípio resistem em aceitá-la, mas Tom com um discurso eloquente propõe que lhe dêem uma chance.


Os moradores de Dogville concordam com sua presença e estipulam o prazo de duas semanas para que Grace demonstre sua verdadeira personalidade e convença a todos, para, depois decidirem sua sorte.
Tom, perante o acordo, aconselha Grace ser útil à população para ser aceita para não incomodar ninguém com sua presença.
A intrusa tenta ser agradável, mas todos negam seus préstimos, alegando que não precisavam de nada. Então, Grace passa oferecer fazer coisas que “não precisavam ser feitas”.


Os habitantes de Dogville acabam por aceitar seus favores, apesar de não admitirem. Não há generosidade ou aceitação, somente trocas e, é esse sistema de compensação (“o qui pro quó”) aliada à personalidade de tudo perdoar de Grace (“o altruísmo”) que anuncia a tragédia.
Passados alguns dias, os moradores de “Dogville” que relutaram aceitar suas ajudas, agora passam ser dependentes dos seus favores: “Àquelas coisas que julgavam desnecessárias, passa a ser uma constante no local.”


A recepção temerosa cede lugar à integração harmoniosa.
Grace ajuda um agricultor a recolher suas maçãs; limpa o mercado de uma senhora meio rabugenta; ajuda cuidar das crianças de uma família numerosa; lê para o cego da cidade; auxilia um rapaz que quer ser engenheiro, mas é meio atrasado mentalmente etc.


Aos poucos, Grace vai conquistando todos os moradores de “Dogville”, que passam aceitá-la. Com o tempo, a presença de Grace deixa de ser tolerada, tornando-se bem-vinda, e, em última instância, indispensável. Os moradores de “Dogville”, então, farão tudo ao seu alcance para manter esta “mais-valia”.
No Dia da Independência, Tom declara o seu amor a Grace, mas não a assume perante “Dogville”.
Um dia a polícia chega em “Dogville”, afixa um cartaz à procura de Grace e os seus habitantes se sentem ameaçados.
Tom recomenda a Grace que dobrem suas horas de trabalho, para que todos se considerem “recompensado” pelo risco que correm.
A comunidade de “Dogville” aproveitando-se dessa situação, passa exigir que Grace pague caro a sua proteção.


O pagamento, inicialmente em horas de trabalho, vai extremar-se até a mais aberrante exploração sexual, uma situação conhecida e legitimada por toda a comunidade.
Sob condição de não denunciá-la, Chuck chega a estuprá-la.
Grace submete-se submissamente como objeto não só pelo trabalho físico como sexual, até seus limites. Não aguentando mais a humilhação e a alienação, Grace tenta fugir. Mas, sua tentativa é frustrada.


Grace passa ser acorrentada em uma roda de ferro e, obrigada arrastá-la por toda cidade, enquanto, desloca-se às casas para cumprir suas obrigações. Em seu pescoço é amarrado um ferro e afixado um sino para que todos possam ouvir onde ela está.
Em seguida, passam a tratá-la como um animal: uma vaca que puxa um arado, onde os caipiras se aliviam. Todas as noites ela é sistematicamente estuprada por todos os homens da cidade, exceto Tom que diz amá-la e pretender ajudá-la.
Tom elabora um segundo plano: Grace deve denunciar o que cada um lhe fez. Ela acata seu plano, mas, a cidade, ao ouvir as verdades, se indigna, desmentindo-a, já que todos se conhecem muito bem e sabem que nenhum deles seria capaz de tal proeza.
Tom se diz decepcionado com todos, dirige-se à casa de Grace e tenta fazer amor com ela.


Grace o rejeita alegando que não seria correto, pois deveriam estar ambos livres para realizarem o seu amor, mas se ele quisesse forçá-la, como todos os outros fizeram, ela não podia relutar. E, acrescenta que tinha certeza dessa intenção dele.
Tom fica indignado com essa atitude.
“Tom estava bravo. E, no meio disso tudo, ele descobriu por quê. Não era por ter sido falsamente acusado, mas sim porque as acusações eram verdadeiras. Sua raiva se resumia ao sentimento desagradável de ser descoberto. Foi um choque para o jovem filósofo. (...) Grace era um perigo para a cidade, e para ele também.” (“Dogville”)
Tom decide dar um basta nessa pequena metáfora ilustrativa que Grace representava; em seguida, retorna à reunião e através de um discurso apelativo, incentiva os moradores entregarem-a, chamando o gângster que a procurava.
A partir dessa determinação, todos passam a tratá-la civilizadamente e depois de cinco dias, oito carros chegam à “Dogville”.
Nesse momento revela-se que Grace é a filha do Chefe-mor que havia fugido do seu meio, na tentativa de não se corromper e almejar ser uma “pessoa melhor”.
Perante tal afirmação, o pai de Grace acusa-a de arrogante.
É revelado que ao buscar a convivência com pessoas de “bom caráter”, Grace encontrou em seu caminho somente hipocrisia humana.
Grace entra no carro de seu pai, assume o poder que lhe é oferecido e em seguida, ordena que seja feita justiça. E, um cruel massacre ocorre em “Dogville”.
Grace transforma-se numa justiceira, executa pessoalmente Tom, poupando somente ao cão Moisés, único que foi sincero desde a sua chegada e, que definitivamente nunca escondeu que não gostava dela.
No final do filme, Moisés se materializa e o desenho no chão se transforma em um cachorro “de verdade”.
Sem dúvida, esse final apoteótico e imprevisível, leva o espectador a aplaudir; afinal, Grace não lavou apenas o mundo de uma cidade, lavou a alma de todos que assistiram ao filme.
Grace, no epílogo do filme, afirma que se tivesse estado no lugar deles, dos habitantes de “Dogville”, teria feito a mesma coisa, ou talvez pior. Basta pensarmos no nosso cotidiano para percebemos com esta frase se aplica a tantas situações.
Em “Dogville”, Von Trier deixa claro que se trata de uma ficção, ao mesmo tempo em que afirma que embora não real, é de uma probabilidade universal.
CONCLUSÃO:
Em plena modernidade, nasce o anti cosmopolitismo, a lógica maquiavelicamente dualista, a hipocrisia da comunidade que continua a pregar o respeitável, mas por detrás das paredes, das máscaras, comete as atrocidades que acaba por legitimar coletivamente. Neste contexto, Von Trier assume-se como um crítico mordaz das sociedades contemporâneas. A sua fábula moralmente demonstrativa é uma tese sobre o Mundo e sobre o Homem.
Não se trata apenas de discutir as formas da arte, mas as formas do Homem.
Von Trier descreve circunstâncias, não culpa o indivíduo. A sua lógica relacional está povoada por questões atemporais, como as que decorrem do pensamento religioso. A religião sempre discutiu a condição humana, como o fez a filosofia e a arte.
O filme “Dogville” refere-se várias vezes, às escolas de filosofia, especialmente os gregos. Por duas vezes citam-se os ensinamentos estoicistas (Grace ensina o estoicismo aos filhos de Vera (Patrícia Clarkson lhes mostrando como suportar a pobreza e as frustrações sem revoltas), uma escola que pregava o abandono da emoção para vivermos sem dor. E muito da moral história gira em torno da diferença entre o altruísmo – dar sem esperar nada, e o quid pro quod – exigir uma compensação equivalente para cada ação.
Quando o pai de Grace chega à cidade, ele acusa-a de arrogante.
“Por que permite que lhe façam coisas que você não se permitiria fazer? Por que se julga superior aos outros? – pergunta ele para a filha, ao mesmo tempo em que lhe oferece o poder para “consertar” as coisas.”
Neste momento a relação indivíduo versus sociedade se inverte. O poder agora mudou de mãos, mas a maneira como é usado difere da situação anterior. A solução final, proposta pelo filme como única forma de tornar o mundo um lugar melhor, não é o que podemos chamar de politicamente correta.
A tolerância e a bondade de nossa protagonista desaparecem tão rapidamente quanto se espatifam no chão seus bonequinhos de porcelana. Seria esta a verdadeira natureza da moça, que finalmente se revelava? Ou ela nada mais é que um produto do meio em que viveu? (determinismo)
Dogville” é um filme extremamente simbólico e que admite várias interpretações: a religiosa, o filme seria uma alegoria do surgimento do cristianismo e de seus acontecimentos subsequentes ou do Juízo Final?
Como toda grande obra de arte, a interpretação da alegoria religiosa é simbolizada quando Grace arrasta aquele peso acorrentado ao seu pescoço, sua resignação com os acontecimentos, faz lembrar também Cristo carregando sua cruz.
Além disso, ele parece construir um retorno às grandes parábolas mítico-religiosas fundadoras da civilização ocidental, mas, em vez disso, ele é uma paródia dessas parábolas e uma alegoria do nosso modo de vida atual. É por isso que, exemplificando, Moisés já não é o que traz as tábuas da lei no Monte Sinai, mas o nome de um cão que assinala a chegada da des-graça (Graça) àquele lugarejo das montanhas rochosas onde se passa toda a ação do filme.
A trajetória de Grace (simbolizando o “presente de Deus” e “o que não pode ser alcançado individualmente”) é comparada a trajetória de um “Messias”, uma “Enviada”, uma “Graça” que “purifica” a cidade e seus habitantes através de seu sofrimento.
No filme temos como protagonistas a Luz da razão (Tom Edison) e a Graça salvadora (Grace), mas, na verdade, o real protagonista deste filme é Moises, o cão de Dogville. Anunciado deste o título Dog-ville, ele marca, por assim dizer, a cadência deste filme.
No final, Moises é o único sobrevivente do Apocalipse, o Escolhido por Lars Von Trier para simbolizar esta grande Terra Prometida que é talvez, a América.
Ele sobrevive à matança e ao extermínio, ganha finalmente corpo (pois até aí ele permanecera invisível, apesar de ser nomeado e de se ouvir o seu latido), deixando-nos a mensagem de que aquilo que nos ladra e nos arreganha os dentes é a verdade finalmente desvelada.
Perto do epílogo, com a chegada do pai de Grace e sua sugestão em castigar todos que a explorou e acabar com o todo o mal de “Dogville”, remete-nos a parábola do famigerado sacrifício que Deus do Antigo Testamento exige a Abraão, como prova de amor; que sacrifique o seu bem maior, matando o seu único filho.
Quando Abraão prepara-se para obedecer cegamente às ordens de seu Deus, aparece um anjo que vem deter-lhe o gesto e dando-lhe em troca um carneiro para o sacrifício. Então, o seu Deus já não exige mais o sacrifício real de vidas humanas, mas antes um sacrifício simbólico por amor e em nome de Deus. No filme, Grace mata todos os habitantes, salvando somente o cão, que pode referir-se não apenas ao animal, mas metonímia de todas as pessoas que a recolheram naquele “mundo cão”, fazendo que ela tivesse uma “vida de cão”, inclusive colocando-a uma coleira.
Curiosamente Grace havia roubado um osso do cão e embora tenha se desculpado, nunca foi perdoada por ele.
Ela permite que o cão fique vivo, pois nele há algo que não havia nos habitantes de “Dogville”, o que era?
Nesse momento, o narrador em off diz: “será que alguém terá coragem de perguntar? E se isso for feito, será que alguém terá coragem de responder?”
A resposta soa um tanto quanto óbvia e reafirma Grace como uma mártir destinada a limpar tais impurezas como um Cristo.
Sem contar que após oito kafkianas e angustiantes partes, Grace quando se encontra com o seu pai, o gangster, iniciam uma conversa sobre o destino de “Dogville”. O gangster, na perspectiva que apontamos anteriormente, é um Deus severo e vingativo assim como no Antigo Testamento. Nesse momento, ela e o pai dialogam sobre a soberbia: Ela quer o perdão para os habitantes da cidade, como se dissesse ”eles não sabem o que fazem”. Deus a acusa de soberbia por fazer a concessão de perdoar quem lhe é inferior e lhe impingiu tanto sofrimento. Grace diz que o pai é soberbo devido à sua vontade de vingança e pede poder, que lhe é concedido, para salvar “Dogville” e, no entanto, purga “Dogville” com o aniquilamento.
Dogville” é a antítese do bom selvagem. E sequer a protagonista é perdoada. Se ao longo do filme somos levados a vê-la como de uma generosidade infinita, o capítulo final mostra que não: se ela perdoou e permitiu que fizesse dela o que foi feito é porque se considerava acima deles todos, indiferente.
Grace jamais foi cativa ou submissa, não tinha misericórdia, mas desprezo. Durante o filme, temos a impressão de que, se quisesse, poderia simplesmente ir embora, e, que os verdadeiros prisioneiros são os moradores e ela sabia disto.
Ela se transforma em um Deus todo poderoso e vingativo que, como em nova Sodoma, destrói toda uma cidade, pois, “se alguém tivesse o poder de consertar as coisas essa alguém teria a obrigação de fazê-lo pelo bem das outras cidades, pelo bem da humanidade.” (“Dogville”)
Deus no lugar de uma “gângster”? Ou vice-versa? Ou Deus aqui é o pai de Grace, sendo ela um Cristo que é martirizado pelo povo, só que no final não os perdoa porque não sabem o que fazem?
Como somos surpreendidos com a posição de Grace e sua vingança terrível e quando nos sentimos felizes com isso. Esta última constatação deixa-nos consternados. Afinal de contas quem somos nós? Como somos nós? “Civilizados”?
Outro dado curioso é o nome da rua principal de “Dogville”: Elm St. Ou Rua Elmo, em português. O narrador, logo no prólogo, diz: “Embora alguma alma do leste tenha dado à rua principal o nome Elm e embora não haja olmo por aqui eles não viram razão para mudar coisa alguma”. (“Dogville”) E no capítulo VII, o narrador acrescenta: “O fim do verão chegou e, na Rua Elm os esquilos subiam e desciam pelas pernas das pessoas procurando, em vão, pelos olmos inexistentes na rua Elm.” (“Dogville”).
Elmo é a parte superior da armadura dos cavaleiros medievais, utilizada durantes as guerras entre reinos ou religiões.
A segunda interpretação da simbologia de “Dogville” é uma representação da sociedade capitalista e da forma como ela expropria os mais necessitados, desde seu advento com a revolução industrial e os supostos benefícios da vida moderna (não se esqueça do Sr. Thomas Edison)
Tom, por exemplo, chama-se Thomas Edison Jr., referência mais que óbvia a um dos mais produtivos inventores americanos (inventou, inclusive, o projetor de cinema), que contrasta vivamente com o inútil Tom que só pensa, não conclui e não age. Sonha escrever um livro, embora sua obra toda se resumisse em “duas palavras: “grande” e “pequeno”, seguidas de ponto de interrogação”. (“Dogville”) Ele tenta transformar o vilarejo em um laboratório para testar suas teorias moralistas e obter material para um “grande livro”, com o hábito de discutir as questões da comunidade em assembléias – uma atividade coletiva, mas que no filme é uma máscara que esconde um individualismo conservador e possessivo.
Outra leitura possível da personagem Tom é que ele representa tão somente a sociedade intelectualizada que, no filme, sempre repete as mesmas coisas, confunde os outros com seus discursos vagos; mente para dar coerência às suas teorias e tem medo de uma inserção mais incisiva nos problemas sociais. A esperança que Grace tinha na humanidade se perde quando os que realmente poderiam fazer algo, o titubeante Tom, não faz e reafirma sua hesitação e passividade; uma crítica ao papel dos intelectuais como operadores sociais.
A transformação de uma sociedade tradicional numa sociedade moderna e industrial foi estudada por um conjunto de autores que são considerados hoje fundadores fundamentais do pensamento social.
Tonnies falou da passagem de um estado “comunitário” a um estado “societal”, Webwe da transição de uma sociedade caracterizada por “dominação tradicional” para uma sociedade onde vingava uma “dominação racional e burocrática”, Durkeim, por sua vez, falou da passagem de uma sociedade dominada por uma “solidariedade mecânica” para uma sociedade definida pela sua “solidariedade orgânica”. Marx, fora daquilo a que o marxismo veio a chamar de sociologia burguesa, antecipou que à dissolução de uma ordem tradicional efetuada por uma burguesia revolucionária, se seguiria uma revolução proletária.
Com evidentes diferenças entre estes autores, todos descrevem a destruição de uma sociedade tradicional, rural, isolada, comunitária e profundamente desigual por uma ordem moderna, burguesa, industrial e urbana onde o indivíduo se autonomizava das normas prevalecentes da tradição e do costume.
Na cidade, espaço da mistura e da liberdade, o indivíduo ia enfrentar outra ordem não menos desigual. Mesmo nos países mais modernos e industrializados, certas lógicas decorrentes de um contexto tradicional tenham desaparecido. O tipo de circunstâncias sociais que informam um contexto comunitário, rígido, pouco cosmopolita, não é monopólio de um tempo ou de um espaço.
Portanto, “Dogville” não é um filme sobre a América, mas acerca dos efeitos perversos de um totalitarismo comunitário que manipula o indivíduo que mecanicamente segue as regras da comunidade sem lhes questionar ou conseguir responder.
O filme revela que os olhos, fechados de uma comunidade mesquinha e isolada, crescem à violência física e psicológica e tudo por detrás da aparência respeitável da comunidade.
E intervir, era romper com o equilíbrio da comunidade.
Uma terceira interpretação simbólica de “Dogville” é a de que o filme é uma crítica à hipocrisia dos EUA e sua atual política unilateral e belicista.
Chamamos atenção à interpretação que se refere sobre a América dos anos trinta (a época da grande depressão econômica), mas é, em vez disso, um filme sobre a nossa época, isto é, sobre o tempo em eu a “grande depressão” já não é apenas econômica, mas ameaça alastrar a toda a nossa vida, a “doença do século XXI”.
Dogville” é o “Ensaio sobre Cegueira” com suas paredes invisíveis: universal, ageográfico e atemporal.
“O mundo cão” e “A cegueira humana” caminham juntos, onde impera o cinismo, a hipocrisia, a chantagem, a vingança, a mentira, e uma visão dogmática que, além de rejeitar qualquer alternativa, simplifica e naturaliza a maldade, arrastando-nos para um final não menos trágico.

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