Livro: A filosofia de Lost
Simone Regazzoni
Editora best Seller
Todos os homens são filósofos
“Locke, seu nome é Locke” (1-03). Com essas palavras Michael apresenta ao grupo dos sobreviventes uma das personagens centrais da série. O líder espiritual. O homem símbolo do “sentimento oceânico”, para utilizar a fórmula que Rolland emprega numa carta a Freud.
Você já o havia encontrado: sentado na praia, com as pernas cruzadas acolhendo a chuva como uma benção, enquanto os outros procuram abrigo. E também entalhando um apito para chamar cães e explicando a Walt o que é o jogo de gamão.
Contudo, apenas agora você assiste á sua verdadeira entrada em cena.
Extremamente hábil no manejo de facas de caça, capaz de matar a sangue frio e dono de uma fé inabalável na ilha, o homem a quem o desastre aéreo do vôo 815 restituiu o movimento das pernas, como por milagre, leva o nome do filósofo inglês
, que viveu no século XVII e é nem casual nem insignificante, exatamente como tudo o que acontece ou se encontra na ilha. Especialmente se você considerar que, ao lado de Locke, encontraremos, no decorrer da série, uma mulher com o nome de “Rousseau”, um homem chamado “Hume”, e que o próprio Locke, após deixar a ilha, adotará o nome de “Jeremy Bentham” – Todos nomes de filósofos.
O espectro da filosofia ronda a ilha e apresenta-se sob a forma de nomes próprios. Essa é a primeira pista visível que trataremos de seguir com a bússola de uma pergunta shakesperiana: O que há num nome?
“Claro que a escolha dos nomes de algumas personagens, como Locke e Rousseau, não é acidental, e que o argumento central, o da contraposição entre fé e empirismo, é algo que nós, autores , discutimos longamente”, afirmou Carlton Cuse. Embora o mérito de ter realizado o encontro entre tevê e história da filosofia caiba a Rossellini- com os filmes para televisão realizados no início da década de 1970 sobre Sócrates, Santo Agostinho, Blasé pascal e René Descartes - , Lost é que detém o título de primeira série criada como “ uma amálgama de diferentes teorias filosóficas” e no qual algumas personagens têm nomes de filósofos.
O que nos dizem, portanto esses nomes?
Qual é sua importância filosófica?
Você poderia ser tentada a seguir a pista histórico- filosófica: tentar explicar, por exemplo, a personagem de locke- suas ações, seu modo de pensar, seu comportamento- por meio do pensamento do homônimo filosofo inglês e das distinções elaboradas por ele acerca da relação entre fé e razão. Contudo, essa seria uma pista pouco interessante, pobre de imaginação e criatividade – e sem aquela força ficcional que é característica de Lost. Em vez de conduzi-la por espaços inexplorados, ou ajuda-la a abrir novas clareiras, a bússola da história da filosofia correria o risco de fazer você andar em círculos, como acontece ás vezes com os protagonistas da série. E não por acaso.
A história da filosofia, como sugere Deleuze, nunca foi uma outra coisa senão” uma formidável escola de intimidação que fabrica especialistas do pensamento” Uma escola da qual Lost zomba abertamente.
Então o que fazer com esses nomes de filósofos?
Nada,talvez você devesse realmente tentar não fazer nada de especial com esses nomes, resistindo á tentação pedante de procurar nexos e relações com os protagonistas da história da filosofia.
Digo isso porque não há nada de tão previsível e certo em Lost.
Por outro lado, ninguém na ilha presta a atenção ao fato de que os nomes de Hunte, Locke e Rousseau sejam nomes de filósofos (embora, no caso de Boone, seja simultaneamente evocado o nome de Nietzche, referindo-se precisamente ao filósofo alemão). É como se tudo fosse absolutamente normal. Essa normalidade singular que envolve as personagens com nomes de filósofos é o cerne da questão
Tomemos como exemplo Locke, já que seu nome entra em cena de modo teatral, como se Michael estivesse dando uma de James Bond quando diz: “ Locke, seu nome é Locke.”
O nome “John Locke”, atribuído a um supervisor regional de uma empresa que produz caixas, não indica nada mais senão o fato de que qualquer um pode ter o nome de um filosofo. Isso porque toda mulher e todo homem – mesmo sem perceber á categoria dos filósofos profissionais – são portadores de uma filosofia.
Em outros termos: porque cada ser humano vivo é sua maneira um filósofo.
Essa função dos nomes de filósofos disseminados entre as personagens da série. Eles não indicam, simplesmente que qualquer um pode ser filosofo. Mas que qualquer um, qualquer mulher, qualquer homem são portadores de uma filosofia e, portanto são filósofos.
A singular normalidade em que os nomes de filósofos circulam pela Ilha indica, em primeiro lugar, que a filosofia não é privilégio dos filósofos profissionais que Lost se confronta.
É uma tese extrema? Talvez – pelo menos para quem está habituado a pensar que a filosofia é sinônimo d academia ou de profissionais do pensamento. Não obstante, ela foi expressa com rigor absoluto por um dos grandes filósofos do século XX, sobe o qual é necessário a refletir por meio de Lost.
Nos Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci escreve: “ É preciso destruir o preconceito muito difundido de que a filosofia de algo muito difícil, pelo fato de que ela é a atividade intelectual própria de determinada categoria de cientistas especialistas ou de filósofos profissionais e sistemáticos.
Portanto é preciso demonstrar, preliminarmente, que todos os homens são filósofos, definindo os limites e as particularidades dessa “filosofia espontânea”.
Na Ilha de Lost, não há filósofos no sentido técnico e acadêmico do termo. Contudo, há filósofos no sentido lato, porque há sujeitos portadores daquilo que Gramsci chama de ‘filosofia espontânea’ .
Mas o que vem a ser essa filosofia espontânea?
Para Gramsci, é uma visão do mundo, isto é, um modo de estruturar e dar forma a visão áquilo que chamamos de mundo.
Cada sujeito, inclusive você, na medida em que possui uma linguagem, tem uma visão do mundo – e portanto , uma filosofia própria que é a maneira pela qual v~e o mundo e o concebe. “Inconscientemente, todos são filósofos, ainda que seja á sua maneira, porque até mesmo na mínima manifestação de qualquer atividade intelectual, na linguagem, está contida uma determinada concepção do mundo.”
Mas precisamente, a filosofia que todos nós possuímos , segundo Gramsci, na linguagem, no senso comum, no bom senso, na religião popular e em seu sistema de crenças.
A idéia de que cada sujeito tem uma visão própria do mundo está bem evidente em lost, em que a trajetória de casa personagem é a história de uma visão de mundo que se confronta e se entrelaça com as outras.
Lost é uma polifonia de visões de mundo que giram em torno do enigma da verdade como enigma da ilha.
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